sábado, 16 de janeiro de 2010

'Os Amantes do Possível'

É um livro. Um dos meus.
Por mais vezes que o releia, não consigo nunca encontrar o tom light que tantos (que no mais das vezes nunca o leram) lhe reputam...
Fica a crítica. Assertiva.

«O leitor que abre o mais recente livro de Inês Pedrosa, depara-se com um dispositivo narrativo de extrema simplicidade: duas vozes apenas que, ao longo de cinquenta blocos textuais, a que, pela episódica brevidade, não podemos chamar capítulos, se cruzam numa espécie de diálogo espectral. Uma dessas vozes é feminina e é a ela que cabe a iniciativa de convocar os temas. A outra voz, que viremos a saber que é mais velha, pertence a um homem. Poderíamos pensar, segundo as convenções de leitura para que estamos preparados, que entre estas duas personagens existe sobretudo uma relação passional. Mas aquilo que as une é de uma outra ordem - e de certo modo, o livro mais não faz do que ir à procura do nome exacto para essa ordem, o nome apropriado para esse tecido de palavras que une, enreda, compromete, envolve estas duas vozes. De um modo esquemático, dir-se-ia, como a própria Inês sugere, que se trata de uma relação de amizade. E de que o que a Inês pretende é relançar a energia ficcional da amizade, habitualemente relegada, no campo dos afectos romanescos, para um lugar secundário.
Mas nesse ponto descobrimos, que o que está em jogo é mais do que uma inversão de pregnâncias e conotações. Não é de amizade nem de amor que se trata. Mas de um processo mais complexo e desconcertante em que estamos para além da amizade e do amor, num espaço de infinita sexualização pela pura e também impura ausência dos corpos, numa espécie de invenção impossível a que apenas se pode dar o nome de Deus. Porque, se Deus é também uma personagem deste texto, é precisamente deste modo, como designação de um lugar concebível em que se deixam para trás as etiquetas do amor e da amizade, e onde se pode encontrar o eixo definitivo em que dois seres se precipitam interminavelmente um para dentro do outro (seja na distância, seja na discórdia, seja no absurdo da separação, ou no equívoco da peripécias do quotidiano)

«O que é dito, na dobra de uma página desse livro deslumbrante que é o 'The end of the Affair', de Graham Greene, 'People can love without seeing each other, can't they?', perguntava Sarah depois de ter desistido de ti para te salvar. Ou de Maurice, é a mesma coisa. Podemos amar no escuro, sim, podemos amar nessa luz sonâmbula da ausência, podemos tanto que até inventámos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que as personagens de ficção existem tanto como tu.»

Deus ou o Possível. E o possível é aqui enunciado à maneira de Musil, numa idêntica distribuição de peso e realidade, entre o que aconteceu e o que não chegou a acontecer, mas que nos acompanha sempre, como o outro lado, a face ciciada do que aconteceu. Por isso a voz masculina irá caracterizar-se pela sua lentíssima queda no espaço do Possível,
«Deslizaste para o território musiliano do 'homem possível', aquele para quem tudo o que existe, visível ou invisível, tem a mesma gravidade»

O que Inês escreve é algo que procura forçar os muros da realidade, procura derrubar as convenções e as gramáticas, procura ser político, no mais radical sentido do termo, na medida em que pretende fazer existir aquilo que começa por existir apenas nas palavras em que essa pretensão se formula.
Se as duas vozes, a dele e a dela, a feminina e a masculina, se respondem e dialogam não apenas na memória do que aconteceu de amizade e cumplicidade, mas também na exaltação do que de amor não chegou a acontecer, é apenas porque ao longo de todo o livro procuram um espaço de serenidade que se institua: um espaço onde o possível e o real, a amizade e o amor, o sexo e a ausência de sexo, a presença e a ausência, a morte e a vida, se tornem transparentes, comunicávies, transbordantes e divinos.

[...]
É verdade que neste livro, se quisermos utilizar uma terminologia banal, 'não acontece nada', mas isso é porque tudo aconteceu antes e nada do que aconteceu antes pôde acontecer, sem que fosse ao mesmo tempo, eco, repetição, a antecipação de tudo o que poderia ter acontecido. São «corpos cintilantes de vida potencial»

[...]
A questão essencial com que todos se confrontam tem precisamente a ver com esta relação em que uma amizade se transfigura na enlouquecida brancura do desejo

«Precisei de morrer para te desejar, precisei de morrer para ver a cor do desejo, que é branca, branca e irreparável, como tu, como nós os dois.»[...]»

Eduardo Prado Coelho, in Público, 'Mil Folhas', 2002

2 comentários:

  1. Gosto deveras deste comentário! Apesar de monopolizares o espaço deste blog... :P Aprecio! ;)

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  2. Quanto à extensão do texto, chama-se... compropriedade =P

    Quanto ao conteúdo... com propriedade. :) *

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