segunda-feira, 13 de setembro de 2010

'História para o meu filho João de cada vez que tiver medo'

O João tinha medo de tudo. Mas de tudo mesmo. Porque até as coisas que hoje não lhe causavam medo, lhe iriam certamente causar medo amanhã. Era esse medo que mais o afligia, o medo dos medos desconhecidos.
Tinha também medo de outra coisa: de ser chamado medricas, porque isso era sinal de que todos reparavam no medo que ele tinha de tudo.

'Amanhã', disse ele, 'Vou agarrar no medo, dar-lhe três voltas, enfiá-lo numa gaveta de um armário velho
(...)

Amanhã, amanhã... Esse dia nunca mais chega... Se ontem já passou e o hoje nunca deixa de ser hoje
(...)

O João pensou, muito a sério: 'Se eu não der cabo deste medo enquanto é tempo, é ele que dá cabo de mim. E se o engolisse?'

Não, não era possível, como se pode engolir uma coisa que já está dentro de nós? Sim, porque o medo estava dentro dele. Ele bem o sentia, a apertar-lhe a garganta por dentro, a causar-lhe dores de barriga. Então, pelo contrário, tinha de o atirar todo para fora. Começou a encher os pulmões de ar e de coragem e depois mandou um berro que fez estremecer a casa.
(...)
Ora, o medo, embora não tenha tido medo, olhou para o João com interesse. E o João olhou para o medo, também. Ficaram a olhar de frente um para o outro, como se fossem dois velhos desconhecidos que nunca se tinham visto.
Silêncio e respeito.

E depois o João disse ' Tu não tens medo de te afogar, não tens medo de te queimar nem tens medo que eu te possa berrar. Tu já és o medo, por que havias de ter medo? E eu só tenho medo de ti, porque penso que tu não fazes parte de mim. Mas tu fazes parte de mim, como os meus ossos e os meus pulmões. Tu és o meu medo, por que é que não havias de fazer parte de mim? A coragem não faz também parte de mim? E o riso e as lágrimas, não fazem? De maneira que, olha, fica cá dentro e encontra um canto para te sentares. Mas cuidado: de cada vez que abusares vai haver guerra.'

Sérgio Godinho
in 'O Pequeno Livro dos Medos'

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