quarta-feira, 27 de julho de 2011

D'Um Estado de Excepção...

"O que eu mais queria neste mundo era sossegar. Sossegar é um verbo que é preciso redimir. Sossegar não é descansar (...) Não quero acalmar-me, ou serenar ou assentar. O sossego é um estado de excepção em que a alma vem ao encontro do corpo. Pode sossegar-se em momentos de grande agitação, de um acesso de amor, em que esse amor parece lucidez (...) O sossegamento é a forma mais precisa de liberdade positiva: uma liberdade para sentir o que se sente e confiar no que se sente, e ter tempo, e vontade, e confiança no que se faz.

Quando se olha para o rosto da pessoa amada, ou se recebe dela um gesto de amor, sossega-se. Quando se sabe de antemão o que vai acontecer, ou como alguém se vai comportar, sossega-se. Quando se faz uma promessa ou um plano que sabemos que se vai cumprir sossega-se. Isso é sossegar. Quando dois amantes decidem ter um filho, por muito medo que isso possa provocar, sossega-se. Qaundo um amigo aparece sem avisar, interrompendo tudo aquilo que se tencionava fazer sossega-se (...)

Gosto de sossegar como verbo transitivo. Sossegar só por si não chega. É mais bonito sossegar alguém. E não é adormecendo ou tranquilizando, em jeito de médico a dar um sedativo, que se sossega uma pessoa. É enchendo-lhe a alma de amor de confiança, alegria, esperança e tudo o mais que é o presente tornar-se, de repente, futuro. É o futuro que sossega. 'Amanhã vamos passear' sossega mais do que 'não te preocupes' ou 'deixa lá que eu trato disso'.

A aquietação, como sono, é uma espécie de morte. Sossegar não é jazer. É viver! Uma pessoa sossegada é capaz de deitar abaixo uma floresta. O sossego não é um descanso, é uma força. Não é estar isolado e longe, deixado em paz - é estar determinado no meio do turbilhão da vida.

O coração sossega em quem se conhece. Conhecer uma totalidade, as coisas feias ou bonitas, mas previsíveis ou familiares. É por isso que sossega olhar para um rosto amado, que se conhece, ouvir a voz dessa pessoa, mesmo quando está a dizer disparates. Não há falinhas mansas que tragam o sossego dos gritos de uma pessoa com quem se pode contar. É um alívio.

Só a ordem pode sossegar por muito alterosa que seja. A tempestade sossega o marinheiro que conhece bem o barco e o mar. Não é o que diz a minha mãe que me sossega - é a minha mãe. Não são as palavras, é a voz. Não é o ela estar aqui ao pé de mim - é o saber que ela está.

No nosso tempo as pessoas querem o sossego... serem 'deixadas' de alguma forma ou outra. 'Eu quero é que me deixem em paz' (...) Mas a solidão não sossega. Só os outros nos podem sossegar. Só no meio da vida, em plena acção, se pode, vale a pena, sossegar. O 'eu interior' é uma algazarra de desassossego.

Não me saem da cabeça, poucos, os instantes em que me senti sossegar, e foi sempre graças a outra pessoa, vista ou lida, conhecida ou desconhecida, menina ou crescida, sábia ou maluca, próxima ou longínqua, mas sempre presente, mais presente do que eu próprio (...) Lembro-me em particular de um momento que consistiu apenas em olhar alguém e sentir que tudo nela me era querido e conhecido e familiar. Não há no mundo paisagem como o rosto da pessoa amada, sobretudo quando se está agitado, a rir-se ou a zangar-se, apanhado desprevenido nos olhos como se estivesse dentro deles, já. Sentir essa mistura de perdição e proximidade é verdadeiramente sossegar.

Não são as mentiras, por muito boas, que sossegam. Só a verdade. Às vezes, sossega mais ouvir um 'odeio-te', se 'odeio-te' for dito com amor e com verdade, e 'amo-te com preguiça, por hábito, ou para nos sossegar (...)

O que mais queria era sossegar. Não há diferença entre correr atrás das estrelas e ficar na cama a apascentar.

O desassossego em que vivemos deve-se, pelo menos em parte, à nossa incompreensão do que é na pura verdade sossegar e à cobardia e ausência de vontade de tentar alcança-la, entregando-nos nas mãos de quem nos pode ajudar.

Que ao menos esta seja a causa do nosso desassossego, porque tudo o mais que queremos (ou pensamos querer) - a felicidade, a realização, o prazer, a tranquilidade - ao pé do puro sossego não é possível - e, se calhar, nem é verdade."

*MEC

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