terça-feira, 23 de julho de 2013

Chagas - Parte II

Escreva um texto que:



No 1.º terço faça rir;
No 2.º terço faça chorar;
No 3.º terço faça pensar.
 
 
Após três encontros no café que ele havia sugerido, as tensões aumentaram: ela estava de blusa, uma vez que tinha uma reunião importante com a chefia ao fim da tarde; ele estava com o seu habitual fato escuro e a imaculada gravata que lhe fazia realçar os olhos castanhos (“cor de mel”, exigia ele). Se, ao menos, ela tivesse optado por uma camisa do seu tamanho e o primeiro botão não estivesse absolutamente agoniado e desesperado por saltar; se ao menos as calças dele fossem mais largas, para que não se percebesse – de forma óbvia! – a alegria tamanha que tinha por a ver! Foram, sem palavras, à casa de banho mais próxima. Por entre o fulgor do encontro, do seu olho cor de mel direito saltou a lente de contacto, que rapidamente o fez exclamar “Não vejo nada! Ajuda-me a encontra-la!”. Ela dirigiu-se ao chão e eis que o seu longo cabelo fica preso no puxador da porta! “E o prémio do encontro mais sensual de sempre vai para…”, pensou.
Ele acabou por encontrar a lente e, após ajudá-la a depreender-se do puxador, saiu com pressa – com tanto de pressa quanto de atrapalhado.
Ela vestiu os collants e dirigiu-se ao espelho para arranjar o cabelo. Apercebeu-se como, no meio do suor, o seu rímel havia descido pela bochecha esquerda. Olhou-se. De frente. Até doer. Como fora capaz de o fazer novamente, logo após o que sucedera? Ainda tinha o marido no hospital psiquiátrico que tentava lidar com o que havia feito; ainda tinha a sua menina no hospital, após o tiro que nela foi desferido e do qual não sabia se iria recuperar. Retirou da carteira o primeiro poema dela, que sempre trouxera consigo e a aconchegava nos dias difíceis. Leu: “à noite durmo, de dia sou feliz”. O rímel estava já espalhado pela sua face, aproveitou o desarranjo daquele encontro fortuito para puxar o cabelo: perceber se com a dor física conseguia acalmar a dor na alma. Ocorreu-lhe que, daqui em diante, de noite não dormiria nem nunca mais seria feliz de dia. Nenhuma delas.
O sexo animal apenas lhe serviria para apagar a dor que sentia, sempre assim foi. Ou seria por puro acto de egoísmo, sem justificação? Afinal, pautando-se pela crua e dura honestidade: teve um casamento tão bom, um marido sereno, que a apelava a (tentar) ser maior. Que a queria mais. Não o conseguiria amar melhor?
Olhou(-se), escutou(-se): sabia, sabia até ao âmago, sabia na pele, sabia nos seus olhos esborratados, quem verdadeiramente tinha colocado a sua família no hospital, quem tinha, afinal, já enterrado toda a sua vida. Sabia quem deveria responder por homicídio. Negligente? Não, com dolo. Sempre se conhecera, sempre soubera que carreava a fatalidade. Tinha de saber mais e fazer melhor: se não fosse por amor ao marido, que o fosse por amor à filha de ambos.
Contudo, sempre se questionou: se fosse de outra forma, seria ela própria? Afinal, faz parte do amor aceitar a monstruosidade que o outro é.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Pulsa!