terça-feira, 23 de julho de 2013

Chagas - Parte II

Escreva um texto sob a ideia «Amanhã foi tarde demais».
 
"Quando alguém nasce, nasce selvagem!": recordo-me, de forma cristalina, de cantarmos juntas a caminho da escola. Lembro-me que sempre que te perguntava porque não ligavas os piscas como todos os outros condutores, tu sempre me respondias "porque ninguém tem nada a ver com a minha vida!"
Passei uma fase da minha vida a desconfiar que eras louca, para concluir no final da tua, da mesma forma: inegável, total e absolutamente louca. E quantos anos mais não fiz senão desejar ser metade da mulher que tu foste: os desejos ficaram em todas as estrelas cadentes que se fundiram no céu, em cada moeda atirada na fonte, em cada vela ferozmente trincada. Com vinte e sete anos a personalidade crê-se formada, pelo que posso afirmar com convicção: não se realizou o meu desejo, almejei demasiado.
Sempre me tentei pautar pela máxima do 'carpe diem' - embora a minha rotina me imperasse forma diferente de viver, o que me poderá ter classificado como autêntica frustrada, já me tinhas advertido -, sempre acreditei que tinhamos de "sugar o tutano da vida", ler poesia e ouvir música pop até à insanidade, beber e fumar muito. Envolver-me com paixão, chatear-me com fúria de tempestade: mas a vida é para ser intensa ou não é?
Julgo que por essa razão não te falei durante três anos nem te apresentei ao meu filho; não te acompanhei durante a doença - não te vi, nem te procurei.
O pai não me pediu para te ver, nem quando definhavas, nem uma só vez; creio que ele sabia que eu simplesmente não podia. Tu achaste-me egoísta.
Imaginava-te no sofá, de cigarro na mão, a acompanhar as notícias da televisão brasileira; imaginava o pai a dizer-te que há canais certamente mais interessantes.
Supunha que a vossa rotina não tivesse alterado, com excepção das tuas idas ao instituto oncológico.
Ao que parece assim foi, mas mora apenas na minha imaginação: nunca estraguei a vida que havia em ti, prometo.
Não ver a tua morte, fez-me pensar mais sobre ela: Sabermos que o sorriso de bochecha reconchuda não pode ser trocado por um sorriso cadavérico, sabermos que não aguentamos o silêncio de quem já teve voz; sabermos, realmente realizarmos, que nada podemos fazer para reverter a história.
A minha natureza não me permite observar o perecimento de algo belo. A tua sadia loucura reside no meu lado esquerdo, vive em tudo o que sou e respiro. Lamento que tenha planeado dizer-to apenas amanhã, mas garanto que não é contraditório com o 'carpe diem': agarrei-me à tua vida de forma hercúlea.
Não me digam clichés: como é que a vida continua?

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