terça-feira, 23 de julho de 2013

Chagas - Parte II


Escreva a carta de demissão de Deus ao Mundo (não interpretar de forma literal).
 
 
(A)Deus: a caminho de outra existência, talvez. Optei fazer a minha vida contigo e, por essa razão, mereces conhecer a minha decisão (ponderada), antes da execução: amor, logo à noite vou matar-me.
Ambos sabemos: o amor não passa de «sado-langores e maso-delícias» e de delícias me cobriste, trouxeste‐me à vida e embrulhaste-a com carinho. Mas a escolha está feita, é tempo de langor: não decidi nascer nem decidi encontrar-te – felizes fortúnios que jamais ousei sequer merecer – mas posso optar pela hora da minha (merecida) morte.
Não sou crente, bem sabes: não me move a esperança de um mundo melhor (qual, sem ti?), nem tampouco de te encontrar num futuro breve. Quero que tenhas uma vida longa em que ofereças mil e um dos teus singulares sorrisos. Mas eu já não pretendo continuar a jornada.
Julga-me ciente do que passamos e acredita que a minha memória nunca fora toldada: Tudo começara com um toque no ombro.
(Re)Conhecemo-nos a um 17 de Março não chuvoso.
Não padecemos de imediato das síndromes fatais da paixão. Mas reparei de imediato no teu cheiro - imutável até hoje, por mais mutável que seja o teu perfume. Nada de alergias, nada de pontapés no estômago, nada de trincas na língua. Ficaram os números trocados e um adeus mais lento que aquilo que seria previsível. Ligaste no dia a seguir e desde então não nos largamos, vencendo todas as adversidades: Eu digo asneiras, tu dizes coisas certas (às vezes); eu atento, tu distrais; eu faladora, tu silente; eu choro, tu ris; eu desespero, tu acalmas; eu sento, tu danças; eu sossego, tu inquietas. Eu sorrio, tu sorris; eu abraço, tu abraças; eu quero, tu querer; eu preciso, tu precisas; eu sinto, tu sentes. Eu, tu, nós, estamos. Eu, tu, somos. Não acreditamos em deus, acreditamos um no outro, em nós.
Sei que não me acharás egoísta pois vês-me mais do que a ti próprio - espero que haja vida depois da morte pois preciso da eternidade para começar a escrever a nossa simbiose.
Também sei que não me pedirias para refletir, sabendo que nada faço de ânimo leve. Nada há a repensar na nossa vida, nem na nossa morte: ambas serão perfeitas, pois ambas foram pensadas em te fazer viver e guardares as melhores memórias de nós, meu mundo.
Tu chamas-me (a mim). Devolves-me às cores que tenho, tiras-me dos trajes cinzas e pretos. Foi assim em vida, será assim na morte: quero; mereço um funeral que nos homenageie: quero alegria e que toque a "No Cars Go" dos Arcade Fire (como no nosso casamento e porque... ninguém vai onde nós vamos).
Agora parto, dizendo que sentirei saudades das tuas quatro rugas no canto do olho, esperando-te quando já forem cinco.
 


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